As enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul no início deste ano e a situação de seca extrema que atingiu mais de 1.000 municípios brasileiros em 2024 são apenas algumas das consequências causadas pela emergência climática. Segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), o planeta registrou, de janeiro a setembro deste ano, uma temperatura média de 1,54 °C acima dos níveis pré-industriais – a meta do Acordo de Paris era limitar esse aumento até 1,5º C.
Em meio a esse cenário catastrófico, a solução para construir cidades mais resilientes e sustentáveis pode estar em olhar para o nosso passado e identidade. Com técnicas construtivas ancestrais e uma relação de simbiose com a natureza, a arquitetura afro-brasileira tem muito a nos ensinar sobre como podemos vislumbrar um futuro mais otimista.
O que é arquitetura afro-brasileira?
A arquitetura afro-brasileira é aquela pensada e produzida por afrodescendentes a partir da cosmopercepção dos povos africanos em todo o seu conjunto de valores e estéticas, que se traduzem, por exemplo, nos quilombos e terreiros contemporâneos – tanto rurais quanto urbanos. “Ela incorpora a forma de ser e estar no mundo dos afrodescendentes no Brasil”, explica o professor e arquiteto Fábio Velame, líder do grupo de pesquisa EtniCidades: Grupo de Estudos Étnicos e Raciais em Arquitetura e Urbanismo da UFBA.
Ainda, para a arquiteta e urbanista Vilma Patrícia Santana Silva, diretora de Pesquisa e Extensão do CAMBARÁ e co-fundadora do grupo de pesquisa EtniCidades da UFBA, o mais correto é falar sobre arquiteturas afro-brasileiras (sim, no plural), já que o conceito engloba uma diversidade de técnicas construtivas e valores afrodiaspóricos. “Cada terreiro é uma nação, tem uma diversidade construtiva e um histórico que é traduzido no território. Pensar a arquitetura afro-brasileira é pensar na comunidade negra enquanto produtora, executora e preservadora de saberes e tecnologias ancestrais”, completa.
Ao falar sobre arquitetura afro-brasileira, podemos citar alguns princípios essenciais que formam sua base: ancestralidade, coletividade, ligação com a natureza e territorialidade. Com saberes passados de geração a geração, o respeito e valorização do que é ensinado pela senioridade é um dos aspectos que conduzem a arquitetura afro-brasileira, assim como a valorização do coletivo, que extrapola os laços consanguíneos. “Não existe apenas o indivíduo. Você só existe dentro de uma comunidade”, ressalta Fábio Velame.
Ainda, há a questão da territorialidade, que fazem dos espaços afro-brasileiros locais de preservação social e cultural. “Eu posso ter um lugar ou um espaço, mas ele é territorializado a partir de uma cultura. E a arquitetura afro-brasileira é justamente a tradução da cultura negra impressa no território”, diz Vilma Patrícia. Por último, para a arquitetura afro-brasileira, não existe a separação entre natureza e ser-humano: tudo é um único organismo. Mas isso vai além da ideia de sustentabilidade contemporânea. “Ela está vinculada a uma forma de estar no mundo, de conexão das pessoas com o planeta, a fauna e a flora”, afirma Fábio.
Como isso se traduz nos quilombos e terreiros?
Os quilombos são comunidades formadas por descendentes de africanos escravizados que, após a abolição da escravidão, buscaram preservar sua cultura, identidade e autonomia. Ou seja, são espaços que têm origens na resistência e na luta pela liberdade. Já as comunidades quilombolas são aquelas que, ainda hoje, mantêm essa herança e lutam pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais. Os terreiros, por sua vez, são espaços de prática religiosa ligados ao candomblé, à umbanda e outras religiões de matriz africana, e podem coexistir ou ser parte de quilombos, funcionando como centros de resistência espiritual, social e cultural. Esses espaços desempenham um papel vital na preservação da memória, das tradições e da luta por igualdade e respeito.
A relação de unicidade entre ser humano e natureza presente na arquitetura afro-brasileira se traduz de diferentes formas nos espaços dos quilombos e terreiros. Um deles é o emprego de técnicas construtivas com uso de materiais naturais, como o adobe, o pau a pique (ou taipa de mão), a taipa de pilão e o tijolo cozido. Nelas, a terra é o elemento central – seja através do uso do barro, da madeira ou até de pedras.
Porém, a relação da arquitetura afro-brasileira com a natureza vai além do aspecto material: há uma energia vital que transpassa todos os seres, desde o homem até as águas dos rios ou as árvores de uma floresta. Ainda, para retirar as matérias-primas da natureza, há todo um planejamento e consideração com a época do ano, os astros e as marés, por exemplo. “Ao adentrar numa mata para tirar o barro, eles vão pedir licença aos ancestrais. E ao construir aquela casa de taipa, no momento de lançar o barro, estão sendo lançadas as lembranças, as histórias e os feitos dos ancestrais. Então, é condensado naquela materialidade todo o patrimônio imaterial, de estética e de valores da comunidade”, conta Fábio Velame.
O que devemos aprender com a arquitetura afro-brasileira?
Antes de tudo, de acordo com os especialistas, para combater a emergência climática e seus eventos extremos, deve haver uma mudança de perspectiva em como o ser humano enxerga a natureza. “É necessário uma mudança de paradigma. Cada edifício que emerge de uma arquitetura afro-brasileira é como se fosse uma árvore brotando. Não é uma construção, é uma planta que, da mesma forma que uma árvore, nasce, cresce e se desenvolve. Então, essa concepção de que a cidade é feita de asfalto e concreto não existe dentro da arquitetura afro-brasileira”, comenta Fábio.
Outra medida que deve ser adotada é o uso (e preservação) das técnicas de construção ancestrais utilizadas na arquitetura afro-brasileira, como a taipa de mão, o adobe e o tijolo cozido. E, acima de tudo, pensar de onde vem e para onde vai o material que será utilizado, mostrando preocupação com a origem sustentável da matéria-prima e seu descarte correto.
Ainda, as intervenções podem extrapolar as construções, indo de encontro a todo o território de uma cidade. Na perspectivas do urbanismo afro-brasileiro, a preservação das matas ciliares, o cuidado com as nascentes e destamponamento de rios, e o adensamento da flora através de parques, praças e jardins são formas de criar cidades mais resilientes e sustentáveis.
A arquiteta Vilma Patrícia ainda acrescenta: “Nós temos a leitura, enquanto arquitetura eurocêntrica, de que um espaço vai passar a fazer sentido após a construção. Quando se fala da arquitetura afro-brasileira, no caso dos terreiros e quilombos, esse território, antes de qualquer construção, já faz parte de um legado da comunidade. A arquitetura é moldada ao local, não o local adaptado à arquitetura. É uma outra lógica”.
Para os especialistas, a arquitetura afro-brasileira tem ganhado mais visibilidade e espaço, mas ainda sofre com o apagamento. “Tal como a população negra, a arquitetura afro-brasileira passa por um processo de racialização vinculado ao racismo estrutural, ambiental, institucional e religioso”, afirma Fábio Velame. Por isso, um dos pontos principais de atuação deve se concentrar na preservação dos espaços onde essa arquitetura se faz presente, como os quilombos e terreiros.
Para se ter ideia, segundo o Censo de 2022, o Brasil possui 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios – e sua maioria, mais especificamente 68,19%, reside no Nordeste. Porém, apenas em 20 de novembro de 2023 (Dia da Consciência Negra) foi assinada uma portaria que regulamenta o tombamento de quilombos como patrimônio cultural do Brasil. Além disso, apenas 12 terreiros em todo o país são tombados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Porém, mais do que preservar esses espaços e absorver esses conhecimentos, é necessário reconhecer e valorizar quem os detém: a comunidade afro-brasileira. “Esses saberes passam de geração para geração. Um dos cuidados que precisamos ter é preservar e mostrar quem é o produtor dessa arquitetura”, afirma Vilma Patricia. Por isso, é necessário atuar em conjunto com os povos afrodescendentes que vivenciam essas técnicas e valores em seu dia a dia. “A arquitetura afro-brasileira não é apenas uma marca do tempo atual: ela fala sobre a ancestralidade de um passado e de um presente, trazendo perspectivas de um futuro possível e até urgente”.
Fonte: Casa Vogue
Foto: Brazil Photos/Getty Images