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Edifício-Floresta (e vice-versa)

Cerca de 80% da população brasileira vive sobre o que um dia foi floresta e nem se dá conta disso. No Brasil, a história se fez e ainda se faz com a cidade se opondo à floresta, numa matriz civilizatória baseada fundamentalmente na devastação das ecologias nativas e sua substituição por monoculturas e espécies invasoras. Em poucos séculos, transformamos um continente florestal megadiverso em ambientes estéreis através de padronizações urbanísticas, arquiteturas desoladoras e paisagismos insustentáveis, impostos como projeto. Vivemos sobre ex-florestas mas resistimos a pensar as cidades como ruínas florestais.

Hoje sabemos que as florestas tropicais como a Mata Atlântica e a Amazônia vêm sendo produzidas pelos povos indígenas em colaboração com os animais e as plantas há milênios através de relações tecnológicas. A floresta tropical é um artefato multiespécie [2], um produto da ação humana e da coadaptação com os não humanos, antes que uma adaptação unilateral do ambiente aos desígnios humanos tal qual a cidade. No Brasil, plantar cidades e construir florestas deveria ser um projeto comum.

Porém, ao que tudo indica, também desistimos de pensar o potencial tropical da arquitetura como um conjunto de habilidades situadas, e também ancestrais, que nos permitam inventar modos de habitar com a floresta e não contra a floresta. Para que possamos, enfim, desfazer as violências tectônicas dos últimos séculos e tentar, se ainda der tempo, reverter a catástrofe que até aqui ajudamos a construir.

Para que isso aconteça, no entanto, é preciso desmontar o paradigma antropocêntrico e humanista fundante da lógica projetual, bem como o viés supostamente neutro da prática profissional ditada por uma economia predatória, e construir alternativas à lógica extrativista e privatista que viabiliza a arquitetura e o urbanismo atuais. É preciso ainda, dentre tantas outras coisas, aprender com a floresta tropical e com seus habitantes-construtores.

A constatação dessas urgências da arquitetura e do urbanismo no Brasil foram o mote de dois projetos, de natureza distinta, mas complementares, desenvolvidos no âmbito do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, nos anos de 2021-22, durante a gestão de Sérgio Gusmão Suchodolski (presidente do BDMG) e Gabriela Moulin (presidente do BDMG Cultural) : O Programa Urbe Urge: Respostas à Emergência Climática, que deu origem ao livro Habitar o Antropoceno (que pode ser baixado na íntegra), e o projeto arquitetônico para o Edifício-Floresta apresentado aqui.

O Programa Urbe Urge: Respostas à Emergência Climática, foi uma iniciativa do BDMG Cultural com o apoio do Cosmópolis, grupo de pesquisa da Escola de Arquitetura e Design da UFMG, no sentido de fomentar uma outra economia da arquitetura e o urbanismo movimentada pela confluência com outros campos do conhecimento e saberes tradicionais-populares, e pela aposta que a arquitetura e o urbanismo, apesar de suas profundas implicações e responsabilidades com a Emergência Climática, podem ser práticas regenerativas e reparatórias imprescindíveis.

Para o Edifício-Floresta, um projeto de pequena escala em um lote urbano de 320m2, localizado na área central de Belo Horizonte, a equipe de arquitetos-urbanistas, designers, biólogos, ecólogos e paisagistas se propôs a investigar projetualmente, como construir de maneira experimental e demonstrativa, uma floresta e um edifício ao mesmo tempo, ou melhor, como construir uma floresta que é um edifício (e vice-versa), aliando processos, máquinas, ferramentas e conhecimentos arquitetônicos, construtivos, ecológicos e paisagísticos.

Partindo da demanda inicial do BDMG, por transformar um lote de sua propriedade e há anos subutilizado como estacionamento de funcionários em uma praça pública com um pequeno pavilhão para eventos e encontros, o projeto do Edifício-Floresta buscou redirecionar esse propósito para explorar as possibilidades de invenção de um outro tipo de espaço público que permita experiências urbanas distintas daquelas contemplativas e controladas das praças e parques públicos: uma infraestrutura híbrida, urbana e florestal, sintética e orgânica, racional e selvagem, aberta e imersiva, estranha e acolhedora, que pudesse receber eventos e promover encontros multiespécies, e que tivesse como meta projetual a produção de diversidade, a gestão da abundância e a coexistência cuidadosa entre humanos e não humanos.

Politicamente, sendo este um projeto para um banco de desenvolvimento, o Edifício-Floresta pretendeu ainda instaurar o debate fundamental acerca de como projetos contratados pelo Estado podem impelir a transição do modelo extrativista da construção e colocar a arquitetura, o urbanismo e a floresta no centro das ações estatais, redirecionando os recursos públicos e as habilidades projetuais para a reconstrução, o refazimento, a restauração, a ressurgência e a regeneração.

Na prática, todas decisões projetuais para o Edifício-Floresta se basearam nas seguintes premissas:

Metamorfosear um lote urbano completamente pavimentado e impermeabilizado em uma ecologia viva e pública, aberta, formativa, permeável, dinâmica, biodiversa, exuberante e criativa.

Despavimentar o terreno como ação simbólica de superação do modelo de urbanização impermeável e dependente de combustíveis fósseis atual, mas também como condição prática para a restauração do solo visando a regeneração da Mata Atlântica que há muito existiu no local.

Aproveitar os escombros da demolição do piso e do muro atuais para a produção de gabiões a serem utilizados no projeto, de forma a evitar “bota-fora” e a minimizar drasticamente o descarte de resíduos, cujo volume estimado anual no Brasil é de 83 milhões de m3 /ano.

Projetar uma arquitetura multiespécie com espaços e programas para a coexistência entre os humanos e as plantas, os pássaros, as abelhas, outros insetos, morcegos e pequenos mamíferos.

Nutrir a terra e criar solo através da produção de biomassa, da compostagem orgânica, da produção de serrapilheira a partir de folhas e podas da varrição pública, do incremento com sementes nativas e da estratificação das camadas vegetais – forrações, folhagens, plantio de mudas pequenas, médias e grandes que garantam a imediata formação do dossel.

Construir uma floresta antrópica com características, espécies e relações ecológicas da Mata Atlântica originária dessa região de Belo Horizonte, e não somente plantar árvores, de forma a atender as inúmeras necessidades da floresta – água, solo, sol, umidade, sementes, interação/atração para animais, explicitando concretamente que nem toda ação humana é a priori destrutiva e predatória.

Antecipar em décadas o processo de restauração ambiental e os passos da sucessão natural através de intervenções aceleradoras para a construção e valorização da ambiência florestal.

Ocupar o mínimo do lote com áreas edificadas e reforçar a condição pública possibilitando acessibilidade universal a todo o espaço.

Edificar uma estrutura em aço e madeira, leve, simples, passível de ser desmontada e remontada (ou reciclada), com materiais certificados – construção a seco, modular, rápida e com o mínimo de necessidade de água.

Permitir usos diversos e simultâneos através de plantas livres, espaços flexíveis e dispositivos de controle da luminosidade.

Criar refúgios, poleiros, coletores de sementes, alimentadores e bebedouros para pássaros, hoteis para de abelhas nativas sem ferrão e dispositivos atratores para morcegos, borboletas e joaninhas.

Coletar orvalho, produzir água e potencializar a evapotranspiração e manutenção da umidade através de uma fachada-membrana sintética projetada para funcionar simbioticamente com a floresta (e que pode ser desmontada no futuro, evitando o constrangimento ao crescimento das àrvores).

Sequestrar muito mais carbono do que o emitido na construção, e em operação, liberar oxigênio na atmosfera em vez de CO2.

Redesenhar o entorno imediato e alargar a calçada de forma a potencializar a esquina como lugar de encontro, eventos de pequeno porte, ações comunitárias e relações de vizinhança.

Captar energia solar suficiente para suprir as próprias demandas com a máxima eficiência energética e o mínimo de poluição lumínica, explorando o potencial ilustrativo da tecnologia na viabilização de empreendimentos urbanos off-grid (financiados pelo BDMG).

Transformar os processos desencadeados pelo projeto em tecnologias sociais e em conhecimento aplicado passíveis de serem desdobrados em oficinas e programas educativos para crianças e adultos: observação de aves, biofábricas para crianças, oficina de produção de mini-floresta; oficina de produção de mudas, oficina de ecologia/botânica, oficina solo/carbono, oficina tempo/clima.

Prototipar um “kit” para lotes urbanos sem uso passível de ser replicado por todo o Estado de Minas Gerais através de linhas de créditos especiais para municípios em consonância com as “Categorias Verdes e Sociais Elegíveis” do “Framework de emissão de Títulos Sustentáveis” do BDMG.

Dar materialidade e espacialidade à Política de Responsabilidade Socioambiental (PRSA) do BDMG, alinhando o projeto aos programas “BDMG Fotovoltáico”, “BDMG Sustentabilidade”, “Calculadora de CO2”,, e em consonância com a Agenda 2030, com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com os princípios da economia regenerativa.

Considerar a transformação da intervenção em uma Reserva Particular Ecológica (RPE) e sua inclusão nas “Conexões Verdes”, corredores de vias e áreas verdes contemplados no novo Plano Diretor de Belo Horizonte.

 

Ficha Técnica

  • Pesquisa e projeto: Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg, Márcio Gibram, Wellington Cançado
  • Projeto de restauração ambiental e paisagem: Márcio Gibram
  • Design e produção de imagens: Micrópolis, Wellington Cançado
  • Ornitologia, ecologia urbana e modelagem ecológica: João Carlos Pena, Tulaci Bhakti e Gabriela Rosa
  • Apoio institucional: Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU-PBH), Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA-PBH), Biofábrica de Insetos-PBH, Serviço de Limpeza Urbana (SLU-PBH), Instituto Estadual de Florestas (IEF-MG).
  • Cliente: BDMG – Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais e BDMG Cultural
  • Local: Belo Horizonte, Brasil
  • Ano: 2021-2022
  • Status: Não construído

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Notas:

1. Para saber mais, ver: Wellington Cançado. Sob o pavimento, a floresta. Cidade e cosmopolítica. 2019.
2. Para saber mais, ver: Wellington Cançado. O que diriam as árvores. 2017.
3. Plantar cidades, construir florestas é o título do ensaio de Wellington Cançado publicado no livro Infinito Vão: 90 anos de arquitetura brasileira, organizado por Guilherme Wisnik e Fernando Serapião em 2019 (Monolito).
4. Para investigar O potencial urbano da floresta e o devir selvagem da cidade, Ailton Krenak, Ana Gomes, Roberto Monte-Mór e Wellington Cançado, ministraram a disciplina de projetos, reunindo alunos da graduação e da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo na UFMG no segundo semestre de 2021.
5. Infelizmente o BDMG Cultural, fundado em 1988, que seria o gestor do Edifício-Floresta, está sendo extinto pelo Governo de Minas Gerais e fechará suas portas ainda em 2024, e o projeto não será construído.
6. Para saber mais sobre essas questões, ver o capítulo “Habitabilidades”, no livro Habitar o Antropoceno.

Escrito por Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg, Márcio Gibram, Wellington Cançado

Fonte: archdaily