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Habitacional ou cidade?

A cidade representa uma das maiores conquistas da civilidade, se a arquitetura que a configura resolve paisagens urbanas agradáveis e estimulantes da vida coletiva, ao mesmo tempo que promove a integração social, a convivência, a segurança, o bem estar geral e o sustento das pessoas. Caso contrário, ela será reflexo de desintegração, acúmulo de construções contraditórias com os princípios básicos do urbanismo.

Capitalismo e desigualdade representam a barbárie do nosso tempo, cujas manifestações ficam evidentes na ocupação do território, nas paisagens urbanas e nos conflitos sociais da maioria das cidades brasileiras.

Cabe ao poder público reverter processos que em nada contribuem com a urbanidade e a civilidade. Os programas de habitação social representam uma louvável iniciativa destinada a resolver as carências de grande parte da população, assim como atender ao direito à moradia disposto no artigo 6° da Constituição Federal. São, também, uma excelente oportunidade para estimular inclusão e cidadania, desperdiçada com processos burocráticos e soluções genéricas e repetitivas. Conhecimento, inteligência e sensibilidade, presentes em muitas consciências profissionais, são substituídas por uma lógica que favorece apenas a interesses de mercado, que reproduz soluções ultrapassadas.

O custo social desse processo se evidencia logo após a posse das habitações. O uso residencial exclusivo, contraditório com a natureza da vida social e da cidadania, provoca o imediato isolamento mediante a construção de muros e grades de proteção, que repetem a lógica da cidade “formal”, em que a “segurança” individual agrava a segurança social. Assim, os conjuntos habitacionais ficam excluídos da estrutura urbana, transformados em ilhas de segregação, e os moradores sujeitos à extorsão de poderes internos.

O direito à cidade, que garante uma vida urbana digna e plena para todas as pessoas, é o principal instrumento para promover cidadania. Compete à arquitetura configurar os espaços e facilidades para seu exercício. A oportunidade de qualificar projetos de habitação popular torna-se refém de interesses que tornam a prática profissional cúmplice de um processo decadente.

Dignificar o social para valorizar o individual, conceito básico do urbanismo, fica relegado por uma visão elementar e fragmentada, que observa a solução do problema habitacional apenas como questão numérica. A qualificação urbana, questão central do problema, passa inadvertida em um programa que poderia contribuir com o processo civilizatório do país.

O próprio nome do programa Minha Casa Minha Vida, que repete duas vezes o pronome possessivo de primeira pessoa, delata a visão fragmentada e individualista, que se manifesta na materialização de conjuntos que valorizam a unidade “casa”, enquanto desconsideram o aspecto social e a promoção do direito à cidade.

O conceito de cidade implica diversidade, mistura, integração, surpresas e convivência dentro de uma ordem geral. A monotonia, repetitividade e segregação dos conjuntos habitacionais revelam a negação do próprio urbanismo.

Na atual circunstância política, com o avanço internacional da extrema direita, promover cidadania e valorizar o direito à cidade mediante atuações em arquitetura e urbanismo resulta vital para assumir a defesa da própria democracia. Substituir o conceito de “conjunto habitacional” pelo de “cidade” representa um caminho que abre perspectivas de uma sociedade melhor, plena de civilidade e atenta à barbárie.

 

Fonte: iab.org.br

Foto: Diário de Pernambuco